De cada dez estupros registrados pelo sistema público de saúde, um é contra vítima do sexo masculino, e 62,5% dos agredidos têm até 9 anos de idade. Dados inéditos do Ministério da Saúde apontam o tamanho do drama ainda invisível da violência sexual contra meninos. Em 2016, foram notificados 2.491 casos de homens atendidos — média de sete por dia. O número é 79% superior às 1.392 ocorrências de 2011, quando o registro das agressões passou a ser compulsório no SUS.
As informações oficiais traçam um perfil ainda mais sombrio: em 36,6% dos casos, há histórico de repetição, 57,3% das violações ocorreram em casa, e os perpetradores mais comuns são amigos ou conhecidos (37%) e familiares (21%). Fenômeno comum da violência sexual, a subnotificação é ainda mais elevada no caso dos meninos abusados que no das meninas, afirmam profissionais que lidam com as vítimas ouvidos pelo GLOBO.
Eles foram unânimes em apontar a cultura machista como o maior obstáculo para romper esse tipo de violação. Diretora do Departamento de Doenças e Agravos Não-Transmissíveis do Ministério da Saúde, Maria de Fátima Marinho afirma que o aumento dos casos pode ser resultado, em parte, da melhoria no sistema de notificação nos últimos anos, mas ela não descarta um salto real na violência. O mais grave, segundo a diretora, é o silêncio em torno do assunto:
— O medo do estigma pesa para todos. Mas as meninas são mais facilmente encaradas como vítimas, enquanto os meninos têm a masculinidade colocada em dúvida. Para muitas famílias, isso é mais importante que a própria violência.
Ao analisar os dados de repetição da violência detectada nos hospitais e o perfil das vítimas, Maria de Fátima faz um diagnóstico grave da situação:
— As crianças ficam prisioneiras da violência. Como vão fugir disso se a maioria não tem nem 9 anos de idade e sofre a agressão dentro de casa? A rede de proteção, formada pela família, pela escola, pelos conselhos tutelares, está falhando. Nem sempre os meninos vão chegar ao hospital — lamenta ela.
Antes mesmo do fantasma da suposta homossexualidade, que leva as próprias vítimas a não buscarem ajuda e influencia também a reação das famílias, um outro fator do imaginário machista coloca os meninos em situação vulnerável: a percepção de que eles têm o dever de se autoproteger. A decepção consigo mesmo, que leva à culpa, é frequentemente revelada na sala de depoimentos especiais de uma delegacia de proteção à criança de Brasília.
— Os meninos têm dificuldade de compreender que aquilo é uma agressão e se questionam se precisam mesmo contar ou se deveriam resolver sozinhos. É muito comum falarem: “Eu tinha que ter chutado ele, ter dado um murro” — conta a agente policial Juliana Amorim.
EDUCAÇÃO SEXUAL É FUNDAMENTAL
Os efeitos da violação sexual nos meninos tendem a ser mais extensos, até no aspecto físico, do que nas meninas, aponta a psicóloga Fernanda Falcomer, que chefia o núcleo de combate à violência da Secretaria de Saúde do Distrito Federal:
— Com a menina, há outros componentes sexuais e nem sempre a revelação ou desconfiança de alguém demora tanto. Com os meninos, evolui mais rápido para uma tentativa de conjunção anal. Recebemos casos mais graves.
O dano mental, segundo Fernanda, depende basicamente de três fatores: duração do abuso, grau de vínculo com o abusador e uso ou não de violência. As consequências para as vítimas variam, como ansiedade, estresse pós-traumático, depressão, dificuldade de se relacionar e até abuso de álcool ou drogas.
Perla Ribeiro, subsecretária da Secretaria da Criança do Distrito Federal, diz ser necessário trabalhar a educação sexual desde a infância, dentro do entendimento de cada faixa etária. Com isso, diz ela, a criança conseguirá identificar a pessoa de confiança a quem poderá recorrer, além de detectar situações suspeitas.
— Estudos apontam que crianças que conhecem o seu próprio corpo, que recebem explicações sobre como ele funciona, dentro dos limites de idade, conseguem se proteger mais. Até para identificar a diferença entre carinho e contato abusivo — aponta Perla. — Apesar dos avanços, ainda existe um tabu nas famílias e uma onda conservadora na sociedade, o que atrapalha o combate ao machismo. Vemos claramente uma retração no debate da educação sexual.
Os especialistas apontam que a violência sexual de crianças não escolhe classe social. Apenas tende a ser menos notificada nos estratos mais elevados, explica Maria de Fátima, do Ministério da Saúde:
— É um tipo de agressão transversal. O que acontece é que as classes sociais mais altas não vêm para o serviço público: o hospital, a escola.
Fonte: Gazeta Online